PENSANDO EM EVOLUÇÃO
03/08/2010 -
PENSE!
O CAMINHO DA EVOLUÇÃO
English:
http://ngm.nationalgeographic.com/2010/07/middle-awash/shreeve-text
Imagem: Reconstrução digital do "Ardipithecus ramidus" moldado em resina.
A região do Médio Awash, na Etiópia, é o lugar habitado mais antigo do planeta. Membros da nossa linhagem viveram e morreram ali ao longo de quase 6 milhões de anos. Agora seus ossos estão emergindo do solo. Os fósseis registram o modo como um primata primitivo e de cérebro pequeno evoluiu até conquistar o mundo. Ou seja, como nos tornamos seres humanos.
No deserto etíope de Afar, a morte chega de muitas maneiras. há doenças, É claro, mas se pode morrer ainda pelo ataque de um bicho selvagem, caindo em um penhasco ou no fogo cruzado entre um dos clãs afares e o povo issa ao longo do rio Awash, mais a leste.
A vida é precária em toda a África. O mais surpreendente aqui é como os restos mortais perduram. A depressão do Afar está situada sobre uma falha cada vez mais larga da crosta terrestre. Com a passagem do tempo, vulcões, terremotos e a lenta acumulação de sedimentos conspiraram para enterrar as ossadas e, bem mais tarde, para trazê-las de volta à superfície sob a forma de fósseis. Esse é um processo que continua até hoje. Em agosto de 2008, um menino foi capturado por um crocodilo no lago Yardi, em uma área do Afar conhecida como Médio Awash. Protegidos pelos sedimentos no fundo, os ossos do menino algum dia também se tornarão fósseis. "Há milhões de anos tem gente morrendo por aqui", diz o paleoantropólogo Tim White, da Universidade da Califórnia em Berkeley, que três meses depois da morte do menino estava na margem do lago. "Às vezes, temos sorte e topamos com o que restou."
Em outubro do ano passado, o Middle Awash, um projeto dirigido por White com os colegas etíopes Berhane Asfaw e Giday WoldeGabriel, anunciou sua maior descoberta até agora: a exumação, 15 anos antes, do esqueleto de uma criatura que havia morrido 4,4 milhões de anos atrás em Aramis, um local cerca de 30 quilômetros ao norte do atual lago Yardi. Pertencente à espécie Ardipithecus ramidus, a fêmea adulta - apelidada de "Ardi" - é mais de 1 milhão de anos mais velha que a famosa ossada conhecida como "Lucy", e também bem mais informativa sobre um dos enigmas cruciais da evolução humana: as características do ancestral comum que compartilhamos com os chimpanzés.
Por mais sensacional que seja, contudo, o Ar. ramidus é apenas um instante em nosso trajeto evolutivo - de um obscuro primata até nossa espécie. Para tentar entender como ocorreu essa transformação, não há lugar mais propício na Terra que o Médio Awash. Além de Aramis, ali são encontradas camadas sedimentares associadas a 14 outros períodos que nos proporcionaram fósseis de hominídeos - os membros de nossa linhagem exclusiva -, desde formas ainda mais antigas e primitivas que o Ar. ramidus até as primeiras encarnações do Homo sapiens.
De acordo com White, várias dessas "janelas de tempo" encontram-se numa área tão restrita que seria possível, literalmente, caminhar de uma a outra em apenas alguns dias. Para provar isso, ele convidou-me a acompanhar sua equipe até a área de pesquisa. O plano era partir da época atual no lago Yardi e andar de volta ao passado, eliminando uma camada após outra daquilo que nos torna seres humanos - característica por característica, espécie por espécie.
Herto: o parente ancestral
Seguimos para a área de pesquisa em um grupo de duas dezenas de cientistas e estudantes, sob a proteção de seis guardas armados. Nossa caravana de 11 veículos leva equipamentos e suprimentos suficientes para seis semanas. Enquanto avançamos pelo planalto, as plantações de sorgo e cereais vão ficando para trás e dando lugar a florestas com neblina. O trajeto está coalhado de destroços da história mais recente - ainda é possível ler uma gasta inscrição com o nome mussolini, entalhada no lintel sobre um túnel, um legado da ocupação italiana do país na década de 1930.
Depois de alcançar o topo da escarpa, descemos em ziguezague por uma imensa encosta que se formou quando a placa continental da Arábia se afastou da África, um processo iniciado cerca de 30 milhões a 25 milhões de anos atrás, fazendo com que a depressão de Afar afundasse ainda mais na zona da sombra de chuva do planalto. No horizonte a sudeste, além da fita azul do rio Awash, as terras altas parecem se fundir ao cone do jovem vulcão Ayelu. E, aos pés do Ayelo, brilha uma lasca prateada: o lago Yardi.
Dois dias depois, estamos andando pela margem do lago - White, Asfaw e WoldeGabriel, além de dois veteranos do projeto, o geólogo Bill Hart e Ahamed Elema, o líder dos Bouri-Modaitu, um dos clãs afares. O lugar é o cenário perfeito para a produção de fósseis, tanto hoje como no passado. Afinal, é ali que se concentram os animais para comer, beber, matar e ser mortos. E seus ossos acabam sob a terra, protegidos da decomposição. Ao longo das eras, a água vai impregnando-os de minerais e eliminando os restos orgânicos. White, de 58 anos, revira com uma machadinha criaturas que morreram há pouco: um esqueleto de bagre, a cabeça de uma vaca. "Para quem quiser virar fóssil", comenta ele, "não há nada melhor que isso aqui."
Nosso primeiro dia de caminhada nos conduz para o leste, através de um dedo de terreno soerguido, conhecido como península Bouri, até o vilarejo de Herto, cujos moradores são afares. Cruzamos dunas baixas e cinzentas e logo um menino e uma menina afares se aproximam com suas cabras. Os afares são pastores e, exceto pelo acréscimo das armas de fogo, ainda hoje mantêm um modo de vida que não se distingue muito daquele adotado 500 anos atrás. Enquanto caminhamos no calor por entre os animais balindo com mansidão, não é difícil imaginar o tempo histórico retrocedendo a cada passo.
Logo nos aproximamos das cabanas cobertas de palha e dos cercados de plantas espinhosas onde ficavam os rebanhos de Herto. Asfaw, ex-diretor do Museu Nacional da Etiópia, em Adis-Abeba, aponta para os meus pés. "Cuidado onde pisa", alerta. Ao redor, fragmentos fossilizados de um crânio de hipopótamo projetam-se na areia. Ao lado há uma ferramenta de pedra, medindo 12 centímetros. Os afares não fazem instrumentos de pedra. Bem, não há dúvida de que chegamos a nossa primeira janela ao passado.
Em novembro de 1997, pesquisadores iniciaram um levantamento da área em que agora estamos, distante cerca de 200 metros do povoado, e toparam com um fragmento de crânio hominídeo. Em seguida, incrustrado no subsolo arenoso, descobriram um crânio humano extraordinariamente completo. Enquanto o resto da equipe exumava esses achados, WoldeGabriel recolhia amostras - pedaços de obsidiana e pedra-pomes do tamanho de bolas de tênis. Tais rochas, lançadas em estado quase líquido por erupções vulcânicas, são preciosas para os geólogos, pois muitas vezes podem ser datadas. As amostras de Herto levaram os especialistas a estimar que o crânio encontrado era de alguém que havia vivido entre 160 mil e 154 mil anos atrás.
O período dessa datação era muito significativo. Com base na comparação do DNA de pessoas modernas oriundas de diferentes regiões, os geneticistas por muito tempo argumentaram que todos os seres humanos modernos tinham como ancestrais uma população que viveu na África entre 200 mil e 100 mil anos atrás. No entanto, havia poucos indícios fósseis desse período que confirmassem tal modelo genético. Então surgiu aquele fóssil em Herto. À medida que o largo crânio de testa projetada emergia da matriz de areia, viu-se que era um rosto perfeito para comprovar a hipótese da origem africana. Era um dos primeiros Homo sapiens modernos - na verdade, Tim White sustenta que é o membro mais antigo de nossa espécie até hoje encontrado. O aspecto mais surpreendente de sua caixa craniana alta e arredondada era o tamanho - com um volume de 1 450 centímetros cúbicos, ela é maior que a média dos seres humanos vivos. No entanto, o comprimento do rosto do fóssil e alguns traços na parte de trás do crânio também sugeriam vínculos com formas anteriores e mais primitivas do Homo na África, entre as quais um crânio com 600 mil anos exumado em 1976 no Médio Awash por outra equipe, em um sítio denominado Bodo, na outra margem do rio.
"Uma das coisas que sabemos a respeito da cultura Herto é que apreciavam carne, sobretudo a de hipopótamo", diz White, espanando a areia de um crânio de hipopótamo. Várias ossadas de mamíferos recolhidas em Herto trazem marcas de utensílios de pedra. Não dá para dizer, porém, se eles abatiam os animais ou se aproveitavam as carcaças abandonadas por outros predadores. Amostras de areia, nas quais foram encontradas conchas de caracol, revelaram que as matanças ocorriam às margens de um lago de água doce, semelhante ao atual Yardi. E, como não se acharam indícios de fogueiras ou outros sinais de ocupação, tampouco sabemos onde viviam.
A julgar pelas grandes dimensões do cérebro do homem de Herto, ele era tão "humano" quanto qualquer um de nós. Em termos comportamentais, porém, faltava-lhe algo crucial. Os utensílios de pedra encontrados no local indicam um nível tecnológico avançado - mas não se distinguem muito de ferramentas produzidas 100 mil anos antes ou mesmo 100 mil anos depois. E não se acharam contas perfuradas em Herto, ao contrário de outros sítios arqueológicos africanos, alguns cerca de 60 mil anos mais novos. Tampouco estatuetas ou outros objetos artísticos, tais como os associados ao Paleolítico Superior na Europa, e muito menos indícios de arcos e flechas, metalurgia, agricultura e toda a parafernália cultural e técnica que viria em seguida. Ao retrocedermos meros 160 mil anos - uma piscadela em nossa jornada evolutiva -, já foi possível despojar a humanidade de um de seus atributos definidores: a capacidade de inovação.
Uma característica curiosa das ossadas, no entanto, poderia servir de augúrio da futura complexidade comportamental - era como um sussurro de simbologia, de sentido. Vários dias após a descoberta dos crânios adultos, Berhane Asfaw fez outro achado: o crânio de uma criança, que se estimou ter de 6 a 7 anos de idade. Marcas de cortes mostravam que havia sido descarnado logo depois da morte, sugerindo assim uma prática ritualística, e não um mero ato de canibalismo. A superfície do crânio infantil estava intacta e exibia um polimento evidente, indicando que fora manuseada repetidas vezes. Talvez o crânio da criança tenha passado de mão em mão e sido venerado como relíquia, possivelmente de uma geração a outra, antes de alguém afinal o enterrar.
Daka: no nosso lado da linha divisória
Depois de um almoço rápido, prosseguimos a caminhada, mas agora no lado oposto do vilarejo de Herto, descendo pela encosta leste da serra Bouri até uma paisagem lunar de arenito cinzento, pontilhada de cavernas e colunas entalhadas. WoldeGabriel explica que esses sedimentos haviam sido soerguidos pela falha geológica na direção sudoeste e, em seguida, esculpidos por ventos, água e gravidade. "As diversas fissuras nas encostas são excelente refúgio para as hienas", conta.
Estamos diante de nova janela do tempo, conhecida como Dakanihylo, ou "Daka", parte da formação rochosa de Bouri. Em Daka, os sedimentos remontam a 1 milhão de anos. No fim de dezembro de 1997 - um ano excepcional em termos de achados de fósseis hominídeos no Médio Awash -, o estudante de graduação Henry Gilbert notou o topo de um crânio na superfície dos sedimentos de Daka. No mesmo dia, a equipe de pesquisadores retirou 45 quilos de arenito em torno do fóssil, a abóboda craniana completa de um membro da espécie Homo erectus - mas desprovido da parte frontal do crânio.
Encontrado pela primeira vez em 1891, na Indonésia, o Homo erectus é um dos antigos hominídeos conhecidos. As dimensões de seu corpo e as proporções de seus membros são muito semelhantes às dos seres humanos modernos. Sua cultura de utensílios de pedra, batizada de acheuliana, caracteriza-se na maioria das regiões por grandes machados simétricos. Ahamed Elema recolhe um deles para me mostrar: um elegante pedaço de basalto negro talhado em todos os lados, com exceção da extremidade aguçada. Era um objeto mais grosseiro que as ferramentas que eu acabara de ver em Herto, mas, equipado e com pernas longas, o H. erectus conseguiu explorar uma ampla variedade de hábitats e provavelmente foi o primeiro hominídeo a deixar a África, quase 2 milhões de anos atrás, chegando até mesmo ao Sudeste Asiático.
Na curta caminhada de Herto a Daka, contudo, uma parte tangível de condição humana desapareceu - em especial, centenas de centímetros cúbicos de massa cinzenta. A caixa craniana do espécime de Daka tem cerca de mil centímetros cúbicos, volume típico de um H. erectus, mas menor que o de um Herto ou que o crânio de um Bodo, de 600 mil anos, achado na outra margem do rio. E, quanto à capacidade de inovação, a situação piora muito: os utensílios acheulianos feitos pelo H. erectus não sofreram modificação notável durante mais de 1 milhão de anos.
White, contudo, tem uma opinião caridosa:
"A espécie teve um tremendo sucesso, expandindo seu território de maneira exponencial. O erectus estava no nosso lado da linha divisória - com o crânio expandido e um nicho ecológico definido pelo uso de ferramentas. Quando retrocedemos mais no tempo, e eliminamos esses aspectos, aí sim entramos em um mundo irreconhecível".
Hata: uma surpresa
Basta um único passo para chegarmos a esse mundo bem mais estranho. No subsolo de Daka há um intervalo na sucessão de camadas geológicas, no qual, graças aos caprichos das fissuras e à erosão, todo um bloco de tempo foi apagado. Assim, dando um salto sobre essa linha divisória, retrocedemos cerca de 1,5 milhão de anos, e adentramos uma planície agreste cortada por ravinas, de cor púrpura cinzenta, no calor do meio da tarde.
Os leitos arroxeados abaixo de nós são conhecidos como Hata, uma janela para um período mais antigo na formação Bouri. Em meados da década de 1990, um raro conjunto de achados ali descortinou uma vista panorâmica de uma das transições mais revolucionárias em nossa evolução. Em 1996, os pesquisadores exumaram ossos de antílopes, cavalos e outros mamíferos que exibiam marcas evidentes de instrumentos de pedra - 2,5 milhões de anos atrás, ou seja, um dos primeiros registros do uso de ferramentas.
"As marcas no interior do maxilar de um antílope mostram que a língua foi cortada", explica White. "Assim, sabemos que estavam produzindo ferramentas e também o que faziam com elas - extraindo nutrição da carcaça de grandes mamíferos." Curiosamente, não foi achado nenhum utensílio. Talvez aqueles que se alimentavam dessa maneira tenham, ao partir, levado embora seus instrumentos. "Não acho que viveram aqui", diz White. "Era só um lugar de passagem."
Ao lado dessas ossadas surgiu o primeiro indício de "quem" poderiam ser eles: distantes alguns metros do local em que estavam os ossos de mamíferos, havia um osso da parte superior da perna, alguns ossos de braços e um fragmento da mandíbula inferior de um hominídeo. O fêmur era comprido - portanto, semelhante ao do Homo avançado, mas o antebraço também era longo, revelando um traço mais simiesco.
Até aí, aquilo parecia ser o cenário ideal para um paleoantropólogo. Naquela época, há 2,5 milhões de anos, a linhagem dos hominí-deos havia se bifurcado. Um dos ramos do gênero Australopithecus havia desenvolvido recursos específicos para o consumo de tubérculos e outros alimentos duros - poderosos músculos nas mandíbulas e grandes dentes posteriores. O outro ramo - hominídeos dotados de dentes posteriores cada vez menores, compleição mais ágil, pernas longas e cérebro cada vez maior - levou aos seres humanos modernos. Cérebro maior é útil, mas por outro lado também consome mais energia. Por isso, requer alimentos mais calóricos - do tipo, por exemplo, encontrado na carcaça de leões e no tutano de seus ossos. Em Hata, porém, ainda faltava um crânio que confirmasse esse cenário: não tão volumoso quanto o do H. erectus, mas tendendo para essa direção. E, na temporada seguinte de pesquisa, outro membro da equipe, Yohannes Haile-Selassie, descobriu o primeiro fragmento de um crânio hominídeo. No entanto, ele está longe de se encaixar no cenário ideal.
O crânio apresenta de fato algumas características similares às do Homo, sobretudo no que se refere ao tamanho dos dentes anteriores. Mas os molares e os pré-molares eram enormes. E, com um volume de 450 centímetros cúbicos, seu crânio não era maior que o de um Australopithecus típico. Essa não era uma criatura com o mesmo domínio do ambiente revelado pelo H. erectus. Tratava-se, antes, de um primata inteligente, bípede, capaz de sobreviver em meio a predadores maiores e mais rápidos - evitando suas presas por tempo suficiente para transmitir à geração seguinte uma inteligência em amadurecimento.
Os pesquisadores o batizaram de Australopithecus garhi; garhi significa "surpresa" na língua afar. Sem dúvida, o Au. garhi estava no local e no momento certos para ser o ancestral imediato do Homo. Mas isso ainda precisa ser confirmado. "A solução do mistério está próxima", comenta Asfaw. "E vai ser encontrada no Médio Awash."
Aramis: uma descoberta improvável
Na manhã seguinte, encontro Asfaw, White, WoldeGabriel e Elema debruçados sobre mapas, traçando os planos para o dia. Nosso caminho passaria pelo território dos Alisera, um belicoso clã afar, "caubóis que não pensam duas vezes antes de abrir fogo", como os descreveu certa vez um pesquisador. A fim de evitar problemas, decidiu-se que primeiro faríamos uma visita diplomática ao vilarejo deles, Adgantole, acompanhados de seis policiais afares. A presença de Elema seria valiosa: como administrador distrital, o chefe dos Bouri-Modaitu também era respeitado por todos os clãs afares do Médio Awash. Após o que esperávamos fosse uma conversa amistosa, a equipe de pesquisa voltaria para o oeste, rumo ao território Bouri-Modaitu, deixando alguns de nós no caminho quando estívessemos longe das vistas dos Alisera, de modo que pudéssemos prosseguir nossa viagem ao passado sem sermos perturbados pelas questões do presente.
Adgantole é um vilarejo empoeirado na borda da planície aluvial do rio Awash. Os afares se cumprimentam com o dagu - um lufa-lufa de beija-mãos e troca de notícias. Nos outros povoados por onde passamos, as pessoas saíam em bandos para o dagu. Mas aqui poucos aparecem para nos cumprimentar. O chefe do clã, enfermo, está recolhido em sua cabana.
Quando Elema acaba de falar com o chefe, amistosamente, tomamos o caminho de volta, seguindo por um terreno elevado entre as bacias de drenagem de dois córregos. A parada seguinte em nossa exploração do passado deveria ser em Maka, um sítio arqueológico de 3,4 milhões de anos no qual foram encontrados um maxilar e outros resquícios do Australopithecus afarensis. Porém, Maka fica na outra margem do rio. Um conflito armado entre os afares e os issas havia feito da região ribeirinha uma terra de ninguém inacessível - algo bom para a fauna selvagem, mas péssimo para a busca de fósseis.
O espécime mais famoso do Au. afarensis é a própria Lucy, encontrada por Donald Johanson no sítio de Hadar em 1974 - uma descoberta analisada e divulgada em 1979 por Johanson e Tim White (então com apenas 28 anos), junto com outros fósseis de Hadar e do sítio Laetoli, na Tanzânia. Com idade estimada de 3,2 milhões de anos, Lucy tinha um focinho projetado e um cérebro pouco maior que o de um chimpanzé. Mas sua pelve e seus ossos dos membros - assim como as pegadas preservadas em Laetoli - revelaram que a espécie de que fazia parte já era bípede. Alguns cientistas, porém, argumentaram que os dedos longos e curvos, os antebraços compridos e outras características indicavam que também estava adaptada a se mover em árvores, como o chimpanzé. A maioria dos especialistas estava convencida de que os ancestrais de Lucy deviam se movimentar de modo ainda mais parecido com o do chimpanzé, balançando-se nos galhos e andando com a ajuda dos membros superiores quando no solo. Restava apenas achar os ossos que confirmassem isso. "A gente achava que Lucy era primitiva", comenta White. Então dá uma bela risada e completa: "Na verdade, não tínhamos ideia do que é primitivo mesmo".
No dia anterior, tomamos o rumo leste, em direção ao rio. Agora vamos para o sudoeste, atravessando uma extensão de terreno agreste e erodido conhecido como Complexo Central de Awash (ou CAC, na sigla em inglês). No centro dessa área fica Aramis, o lar da própria Ardi.
Desde o início da década de 1990, Giday WoldeGabriel e seus colegas tentam entender a complicada geologia do CAC, a qual agora ele me explica de maneira resumida. Há cerca de 5,2 milhões de anos, um derrame de lava recobriu uma imensa planície aluvial. Com o passar do tempo, os sedimentos foram se acumulando sobre esse leito de basalto. Erupções vulcânicas ocasionais entremearam finos veios de tufos de cinza aos sedimentos, como lâminas de recheio entre as camadas de um imenso bolo. Ao mesmo tempo, o magma que pressionava por baixo a superfície acabou inclinando o bolo para o oeste, voltando a expor sedimentos há muito soterrados e, com frequência, cinzas que podem ser datadas. Nosso caminho segue até a encosta inclinada dos depósitos, um deslocamento horizontal pelo espaço, mas um mergulho vertical no tempo. Infelizmente, ao longo dos milênios, o bolo do CAC foi sendo sacudido e remexido por comoções tectônicas, além de ser carcomido por processos erosivos, e assim os pedaços de bolo e de recheio acabaram misturados a esmo.
Quando começamos a descer a crista, WoldeGabriel para um instante e usa o martelo de geólogo para examinar um veio de rocha vulcânica clara conhecida como tufo de Lubaka. (No Médio Awash, os tufos vulcânicos foram batizados com nomes de animais em língua afar: lubaka significa "leão".) O tufo de Lubaka não contém minerais, mas pode ser datado por métodos radiométricos - e sob o tufo havia material datável de outro tipo. Ao longo das eras, a polaridade magnética da Terra inverteu-se algumas vezes, e isso se nota na orientação dos minerais magnéticos em certas rochas. Uma dessas inversões de polaridade, ocorrida há 4,18 milhões de anos, deixou sua marca nos sedimentos do CAC.
Nosso primeiro destino é uma área plana com vegetação esparsa onde em 1994 foi achado um osso de maxilar. Ele mostrou-se bem parecido com os fósseis que Meave Leakey e seus colegas haviam encontrado em dois sítios no Grande Vale Rift, no Quênia, e receberiam o nome de Australopithecus anamensis. E outros indícios surgiriam em uma localidade do Médio Awash denominada Asa Issie - uma "colcha de retalhos" composta do mesmo tecido sedimentar.
Todos esses fósseis eram um pouco mais antigos que o Au. afarensis, mas, a julgar por uma tíbia recolhida no Quênia e um fêmur de Asa Issie, o Au. anamensis também era bípede. Na realidade, há um consenso geral - algo raro no campo da paleoantropologia - de que a principal diferença entre as duas espécies é apenas o lugar que ocupam na linha do tempo. Em outros termos, os nomes designam dois pontos arbitrários de uma mesma linhagem evolutiva, não existindo entre os dois nenhuma linha divisória nítida.
Abaixo do nível do Au. anamensis, há uma lacuna temporal no trajeto evolutivo dos hominídeos. A argila verde-amarelada sobre a qual andamos foi depositada ali entre 4,4 milhões e 4,3 milhões de anos atrás, quando essa região do CAC era um lago parecido com o Yardi. Nada foi preservado na argila além de peixes. Sob essa camada, porém, está o grande tesouro.
Avançamos com esforço até uma depressão de solo irregular, crestada pelo sol e sem nada característico exceto um semicírculo vago de rochas basálticas. Esse grupo de pedras marca o local em que, em 17 de dezembro de 1992,
o paleoantropólogo Gen Suwa, da Universidade de Tóquio, avistou um enigmático dente molar projetando-se do solo. Alguns dias, perto dali,
o caçador de fósseis Alemayehu Asfaw achou um pedaço de mandíbula infantil com um primeiro molar. "Esse dente de leite não se parecia com nenhum outro dente infantil de hominídeo que eu havia visto, e olha que já vi muitos", conta White. "Aquilo era algo bem mais primitivo."
A equipe demarcou o peshrímetro de exploração e passou a limpar o terreno. WoldeGabriel começou a estudar a geologia local. Ele concluiu que os depósitos sedimentares com a ossada hominídea estavam entre duas camadas de cinza vulcânica, o tufo Gàala ("camelo") em cima e o tufo Aatu ("babuíno") embaixo. A datação de ambos deu o mesmo resultado - 4,4 milhões de anos. Isso significava que as erupções vulcânicas haviam demarcado um intervalo preciso de tempo - talvez tão breve quanto um milênio. E, por toda parte em que os depósitos afloravam à superfície, ao longo de um arco de 9 quilômetros, havia fósseis - de macacos, antílopes, rinocerontes, ursos, aves, insetos, árvores e outras plantas, e até mesmo pelotas de excremento de besouro. O local todo foi batizado de Aramis, o nome afar do leito seco de um riacho nas proximidades. "Neste lugar, naquele momento, houve uma conjunção de todas as condições ideais", diz White, abrindo os braços. "Tudo estava certo."
No ano seguinte, a equipe de pesquisa começou a explorar uma área exposta de Aramis cerca de 1 quilômetro a oeste. Ali surgiram outros fósseis de hominídeos - um canino superior sem desgaste, um atraente molar perolado, mais dentes e, em seguida, um osso de braço. Porém, ainda mais importante que os ossos hominídeos eram os indícios incontestáveis do contexto ecológico em que tais criaturas haviam existido. Durante quase um século, os cientistas acharam que nossos antepassados haviam se tornado bípedes quando deixaram a floresta, onde nossos parentes primatas vivem até hoje, e se mudaram para campos abertos - de modo a poder se deslocar melhor através de longas distâncias ou a divisar um horizonte mais amplo acima da relva da savana. No entanto, um percentual esmagador de ossos de mamíferos em Aramis pertencia a macacos e antílopes que viviam em matas.
Os padrões de desgaste nos dentes dos hominí-deos e as análises dos isótopos no esmalte em seus dentes também sugeriam uma dieta geral mais adequada a um ambiente florestal. Se, de fato, a criatura era bípede, então um dos princípios consagrados da ciência evolutiva humana poderia não se confirmar. O novo hominídeo recebeu o nome de Ardipithecus ramidus (ardi significa "terra" ou "solo" em afar, e ramid, "raiz".)
Em 1994, a equipe estava ansiosa para retomar as pesquisas. Em condições normais, todos ficam exaustos, física e mentalmente, no primeiro dia em campo, devido à logística frenética de montagem do acampamento. No entanto, aproveitando o pouco de luz que ainda restava no fim desse primeiro dia, todos acorreram ao afloramento.
Enquanto o sol se punha, Yohannes Haile-Selassie achou um osso de mão perto de onde o dente fora localizado no ano anterior. No dia seguinte, a equipe começou a peneirar a terra arenosa e fofa em volta do local - e recuperou mais ossos de mão e de pé. Em seguida, vasculhando a área, toparam com uma tíbia. Por fim, acabaram encontrando o crânio e a pelve, ambos esmigalhados. Na verdade, todos os ossos maiores estavam em péssimas condições, quase se esfarelando à medida que se destacavam do sedimento compactado. Assim que um osso era encontrado, precisava ser encharcado repetidas vezes com um líquido endurecedor e depois extraído do solo com o bloco de sedimento circundante, o qual era envolvido em gesso de modo a assegurar que o fóssil não fosse prejudicado na viagem até o museu em Adis-Abeba.
No início, nenhum dos pesquisadores chegou a pensar nisso, mas logo ficou claro que haviam encontrado o esqueleto de um indivíduo tão completo quanto Lucy, mas diferente dela - e de tudo o que haviam visto antes. Enquanto a maioria dos outros ossos no sítio exibia sinais de ter sido destroçada por hienas após a morte, a ossada hominídea estava intacta. Os restos da fêmea aparentemente foram pisoteados na lama por hipopótamos ou outros herbívoros, e assim poupados da ação dos carniceiros. Como permanceceram enterrados por 4,4 milhões de anos, os ossos, se ficassem um ou dois anos na superfície, acabariam virando pó. "Foi mais que sorte", comentou White na época. "Foi um milagre."
Seriam necessários dois anos para restaurar o esqueleto, e outros anos para a limpeza e preparação dos ossos, e ainda mais anos para a preparação e catalogação dos 6 mil fragmentos de vertebrados recolhidos em Aramis, a realização de estudos dos isótopos dos dentes, e a determinação dos detalhes das condições geológicas. Nesse meio tempo, Suwa, um mago do novo campo da antropologia virtual, fez tomografias dos ossos que estavam frágeis demais para ser manipulados, criando versões digitais que podiam servir de base para análise. Durante 15 anos, apenas ele, White e um punhado de colegas tiveram acesso ao esqueleto. Os outros cientistas teriam de esperar até que a equipe estivesse pronta para divulgar os resultados em publicações especializadas.
Durante a viagem até Adgantole, paramos no sítio em que Ardi foi exumada, em um leito seco e plano abaixo da estrada, do tamanho de uma quadra de tênis. A escavação tinha sido coberta com um grande monte de pedras. Agora o local está silencioso, mas consigo imaginar os gritos de entusiasmo à medida que cada osso - no total havia 125 - despontava na terra.
"Não houve nenhum momento dramático de descoberta", faz questão de me dizer White mais tarde, carrancudo, quando pôde falar melhor sobre o esqueleto. Em seguida, ele passa a descrever meia dúzia de tais momentos. Um deles ocorreu quando ele retirou o gesso em torno de um pequeno osso do pé chamado cuneiforme medial, que faz a articulação com a base do dedão. Nos seres humanos e em todos os outros hominídeos, a estrutura de articulação desse osso é disposta de modo que o dedão fique alinhado com os outros dedos, proporcionando forte "pressão" para um efetivo andar bipedal. Nos macacos antropoides, a superfície de articulação aponta para outra direção, com a finalidade de que o dedão fique oposto em relação aos outros dedos, o que facilita o agarramento no tronco de árvores.
No que se refere a essa característica crucial, Ardi era mais parecida com um macaco. Porém, em outros aspectos, o pé dela nada tinha a ver com o dos primatas, exibindo características que lhe teriam permitido caminhar ereta.
Para onde quer que olhassem, os cientistas topavam com o mesmo mosaico esquisito de características: algumas muito primitivas, outras avançadas e exclusivas dos hominídeos. Ardi não era apenas mais um bípede ou mais um quadrúpede. Era ambos ao mesmo tempo.
Pergunto a White se a forma transicional de Ardi justificaria que se considerasse o Ar. ramidus como um "elo perdido". Ele encrespa-se assim que menciono a expressão. "Essa é uma expressão tão inapropriada que é difícil saber por onde começar", diz. "O pior de tudo é a implicação de que, em algum ponto, existiu uma criatura que ficava a meio caminho entre o chimpanzé e o ser humano. Essa noção equivocada é muito popular e desde o início vem atrapalhando o entendimento da evolução, mas deve ser abandonada de uma vez por todas com o Ardi."
Se a equipe do projeto do Médio Awash estiver correta, o Ar. ramidus na verdade não tem nada a ver com o chimpanzé ou o gorila modernos. (Veja na página 93.) Claro que os macacos e os homens descendem de um ancestral comum, mas suas linhagens vieram desde então evoluindo em direções separadas, e muito distintas.
O último ancestral comum
De volta ao médio awash, ainda me falta percorrer 1 milhão de anos antes do jantar. Desde Aramis, caminhamos através de uma planície pedregosa até uma espécie de mirador, de onde se divisa mais de 250 quilômetros quadrados da área de pesquisa. Embaixo de nós, cristas com ravinas abrigam outro meio milhão de anos de sedimentos. Além delas, há o basalto, ali depositado quando essa imensa planície foi coberta de lava 5,2 milhões de anos atrás. À esquerda, veem-se o morro baixo de um vulcão extinto, o Dulu Ali, e, mais além, a península Bouri e o lago Yardi, de onde saímos ontem mesmo. Esse ponto de observação parece ser um bom local para retraçar o caminho evolutivo que conduz desde Ardi até os seres humanos atuais.
"O que a descoberta de Ardi nos permite fazer é pensar a evolução humana como três etapas de montagem", diz White. "No entanto, até mesmo entre essas fases, as fronteiras são arbitrárias e convencionais." A primeira etapa é representada sobretudo pelo Ardipithecus, o "marco zero", um bípede primitivo com parte de seu pé no passado e a outra parte no futuro, com os caninos masculinos já reduzidos e de formato "feminino", não mais restrito às florestas e disseminado por um âmbito geográfico que se estende até 2,5 mil quilômetros a oeste do Grande Vale Rift até o Chade e, ao sul, à região do Transvaal, na África do Sul. Foi uma etapa bem-sucedida para os hominídeos, em termos temporais e espaciais.
O Australopithecus teria evoluído do Ardipithecus? É difícil dizer. No Médio Awash, aquela camada com fósseis de peixes, mas sem hominídeos, é como uma espécie de cortina entre ambos. Até que sejam encontrados mais indícios, ali ou em outras partes, não se pode dizer que Ardi seja a "mãe" de Lucy ou uma tia solteirona que se extinguiu sem deixar descendentes.
Segundo White, porém, há uma questão mais interessante a ser colocada: seria possível derivar o Australopithecus de partes do Ardipithecus? Para alguns cientistas, esse seria um salto grande demais para se dar. Hoje sabemos, com base em estudos genéticos, que pequenas alterações na regulação dos genes podem provocar importantes consequências anatômicas em períodos de tempo curtos. Caso o andar ereto mais eficiente tenha se mostrado suficientemente vantajoso, sustenta White, não seriam necessários muitos milênios para que, graças à seleção natural, se desenvolvesse um dedão alinhado aos outros dedos, e a consequente reconfiguração do esqueleto.
As mesmas regras se aplicam à transição do Australopithecus para a terceira etapa de nossa linha de montagem. Basta surgir o interesse por alimentos mais calóricos, permitindo o crescimento maior do mesmo cérebro que nos ajudou a descobrir como obter tais nutrientes, e pronto - temos Daka, Bodo, Herto e nós mesmos. Evidentemente, os fósseis de outras regiões da Etiópia e mais além também esclarecem o trajeto evolutivo, muitas vezes de maneira mais evidente que as ossadas do Médio Awash. Mas o longo registro de mudanças nessa área demonstra de forma dramática que a evolução implica uma construção sobre o que já havia sido estruturado.
Desde o mirador no Awash, também podemos avistar, na direção oeste, ainda mais longe no passado, até os sopés da escarpa que delimita a borda ocidental da área de estudo. Ali também foram achados fragmentos de ossos de hominídeos que remontam a 5,8 milhões de anos. Coletados ao longo de quatro anos por Yohannes Haile-Selassie, eles receberam o nome de Ardipithecus kadabba. Para muitos cientistas, o Ar. kadabba é uma "cronoespécie" do Ar. ramidus, mantendo com ele a mesma relação que o Au. anamensis tem com o Au. afarensis - ou seja, ambos são uma versão anterior do mesmo projeto básico. White e seus colegas também incluem nesse continuum dois achados ainda mais antigos - intrigantes pedaços de ossos da coxa, com 6 milhões de anos, que foram exumados no Quênia e batizados de Orrorin tugenensis, e um crânio espetacular mas enigmático do Chade, o Sahelanthropus tchadensis, provisoriamente datado de 7 milhões de anos.
Por mais antigos que sejam esses espécimes isolados, é o Ar. ramidus que, pelo menos por enquanto, nos proporciona o melhor vislumbre do que havia na própria base da linhagem humana: o derradeiro ancestral comum que partilhamos com os chimpanzés. Poucos meses depois de ter voltado da região do Médio Awash, pergunto a White qual teria sido, em sua opinião, a aparência desse último ancestral comum. Seu palpite é que seria parecido com a própria Ardi, embora sem o conjunto de traços que lhe permitiam andar com duas pernas. Mas isso não passava de um palpite. E, se aprendi algo no Médio Awash, certamente foi não confiar em palpites."Se quisermos mesmo saber algo, só tem um jeito", conclui White. "É arregaçar as mangas e descobrir."
Jamie Shreeve - Fonte: National Geographic - Edição 124.
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