PONTO DE VISTA
13/03/2007 -
FAZENDO DIREITO
VOCĂ JĂ OBSERVOU QUE AS DIFICULDADES DA NOSSA VIDA DEPENDEM MUITO DO PONTO DE VISTA QUE VOCĂ OLHA?
OBSERVE ....
Na figura, o livro estĂĄ virado para vocĂȘ ou de costas para vocĂȘ?
Seu sucesso ou insucesso depende de como enxerga as coisas em sua vida. Pense nisso!
(Colaboração: A.M.B.)
QUEM TEM MEDO DO POVO?
(FĂBIO KONDER COMPARATO)
SerĂĄ possĂvel que ainda nĂŁo aceitamos o fato de que, na democracia, Ă© o povo que constitui o Poder Legislativo, e nĂŁo o contrĂĄrio?
O NOSSO paĂs logrou realizar notĂĄvel façanha polĂtica: instituiu e fez funcionar, por mais de um sĂ©culo, uma RepĂșblica de interesse privado e uma democracia sem povo. Salvo alguns golpes de Estado e os 20 anos de regime militar, tem-se aceito como verdade de evidĂȘncia que tudo transcorre nos quadros da normalidade republicana e democrĂĄtica.
Eis, porĂ©m, que uma vaga de inquietação se levanta subitamente no coração das classes dirigentes e na cabeça dos seus "intelectuais orgĂąnicos". A dĂșvida cruel Ă© esta: o povo continuarĂĄ a dormir tranqĂŒilamente em "berço esplĂȘndido"?
Um antigo procĂŽnsul econĂŽmico do regime militar e signatĂĄrio do AI-5 de 1968, que assegurou a impunidade para os assassinos, torturadores e estupradores ao suspender o habeas corpus e as garantias da magistratura, declara-se tragicamente preocupado com o futuro de nossa democracia.
Um brilhante jornalista, com maldisfarçada ambivalĂȘncia de propĂłsitos, despeja o vitrĂolo do seu sarcasmo contra a OAB, considerando-a uma "guilda profissional" que nĂŁo tem representatividade para propor mudanças no sistema vigente. Um doutor em ciĂȘncia polĂtica e consultor de empresas alerta para o risco de instauração do "chavismo" ou da abertura do caos em nossa terra.
Ficamos todos sensibilizados com as advertĂȘncias. NĂŁo conseguimos, porĂ©m, compreender por que razĂŁo nenhum dos trĂȘs personagens manifestou a mesma preocupação com o estado de marasmo econĂŽmico e desagregação social persistente hĂĄ mais de um quarto de sĂ©culo neste paĂs. Ou seja, exatamente o inverso do lema de nossa bandeira: desordem e regresso.
Em todo esse largo perĂodo, o crescimento econĂŽmico do Brasil ficou abaixo da mĂ©dia mundial, um fato sem precedentes em nossa histĂłria.
Em 1980, metade da renda nacional era distribuĂda como remuneração do trabalho; agora, sĂł um terço. JĂĄ temos 8 milhĂ”es de desempregados formais, sem contar a multidĂŁo dos definitivamente excluĂdos do mercado de trabalho. O rendimento mĂ©dio do trabalhador brasileiro, medido pelo Dieese e o Seade, caiu 33% entre 1995 e 2005.
O da classe mĂ©dia, isto Ă©, o conjunto dos que ganham entre trĂȘs e dez salĂĄrios mĂnimos, segundo o MinistĂ©rio do Trabalho, decresceu nada menos do que 46% entre 2000 e 2006.
Alguma surpresa se tais fatos coincidiram com a vaga de violĂȘncia e banditismo que se alastrou por todo o paĂs? Ă possĂvel responder a tudo isso sem uma mudança ampla na estrutura dos poderes decisĂłrios do Estado?
Para os trĂȘs personagens mencionados, a iniciativa de reforma polĂtica tomada pela OAB e outras entidades da sociedade civil (foram mais de 30 a assinar um "manifesto por uma reforma polĂtica ampla, sĂ©ria e democrĂĄtica", entregue ao Congresso) Ă© indevida e extemporĂąnea. Os partidos polĂticos e os malchamados poderes pĂșblicos (lembremos que "publicus", em latim, indica o que pertence ao povo) Ă© que devem se ocupar com exclusividade do assunto, fazendo-o com o zelo e a competĂȘncia que todos reconhecemos e admiramos...
Ora, o que se desconhece Ă© que a OAB tem nĂŁo sĂł o direito mas o dever legal de atuar nessa matĂ©ria. A primeira de suas finalidades, prescrita na lei nÂș 8.906/2004, que estabeleceu o seu vigente estatuto, Ă© "defender a Constituição, a ordem jurĂdica do Estado democrĂĄtico de Direito, os direitos humanos e a justiça social".
Como diria o respeitĂĄvel conselheiro AcĂĄcio, pode-se fazer funcionar qualquer regime polĂtico sem povo, menos o democrĂĄtico.
A nĂŁo ser que a palavra "povo" tenha sido empregada em dois sentidos no artigo 1Âș, parĂĄgrafo Ășnico, da Constituição ("Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição"). Ela designaria o conjunto de cidadĂŁos quando se trata de eleger representantes, mas significaria "uma mirĂade nĂŁo especificada de grupos corporativos e movimentos sociais", segundo a expressĂŁo do mencionado cientista polĂtico, quando se quiser tomar decisĂ”es populares em plebiscitos e referendos. Obviamente, nesta Ășltima hipĂłtese, o Congresso Nacional deve aparecer como substituto necessĂĄrio desse ajuntamento.
SerĂĄ possĂvel que ainda nĂŁo aceitamos o fato elementar de que, numa democracia, Ă© o povo que constitui o Poder Legislativo, e nĂŁo o contrĂĄrio?
De qualquer forma, os paladinos da conservação ilimitada do status quo podem se preparar para viver uma fase de crescente angĂșstia: o povo brasileiro acabarĂĄ, enfim, por exercer a soberania que lhe foi desde sempre negada. Ă uma questĂŁo de tempo.
Viva o povo brasileiro!
FĂBIO KONDER COMPARATO, 70, advogado, professor titular aposentado da Faculdade de Direito da USP, Ă© presidente da ComissĂŁo de Defesa da RepĂșblica e da Democracia do Conselho Federal da OAB e fundador e diretor da Escola de Governo, em SĂŁo Paulo. Ă autor, entre outras obras, de "A Afirmação HistĂłrica dos Direitos Humanos".
Fonte: Folha de S.Paulo - 13/03/07