O DIA DO SACI
30/10/2008 -
MANCHETES DA SEMANA
E VIVA O SACI-PERERĂ
English:
http://en.wikipedia.org/wiki/Saci_perer%C3%AA
O Dia do Saci Ă© um evento criado pelo governo do Brasil em 2005, de carĂĄter nacional, elaborado pelo entĂŁo lĂder do governo Aldo Rebelo (PCdoB - SP) e Ăngela Guadagnin (PT - SP) com o objetivo de resgatar figuras do folclore brasileiro, em contraposição ao "Dia das Bruxas", ou "Halloween", da tradição cultural dos Estados Unidos da AmĂ©rica. Por isso Ă© celebrado em 31 de Outubro.
Imagem: Capa do livro "O Saci" de Monteiro Lobato (1941).
HALLOWEEN Ă BRASILEIRA
Em 31 de outubro, em vĂĄrias partes do mundo, Ă© comemorado o Halloween, ou Dia das Bruxas. Tradição norte-americana que, pouco a pouco, vem sendo importada pelo nosso PaĂs. Mas por que se vestir de bruxinha, cortar abĂłbora e sair por aĂ falando "travessuras ou gostosuras" se temos lendas capazes de apavorar os mais destemidos cidadĂŁos?
Pra começo de conversa, hĂĄ tempos defendemos a data como Dia do Saci, e nisso temos bons companheiros, infiltrados nos mais diversos campos de atuação: de mĂșsicos a intelectuais; de executivos a profissionais liberais. Alguns reunidos em associaçÔes de criadores e observadores de sacis; outros agindo anonimamente a favor da causa. E quando se fala nessa criaturinha, pode experimentar, logo surge uma verdadeira organização criminosa de seres imaginĂĄrios (ou serĂŁo reais?).
Pois entĂŁo, se vocĂȘ quer mesmo entrar nessa, cativando esas figuras saĂdas das trevas da nossa memĂłria coletiva, hĂĄ que saber: eles sĂŁo capazes de fazer vocĂȘ se perder pela floresta, provocam pesadelos, devoram ĂłrgĂŁos internos e seduzem de marmanjos a donzelas. HĂĄ tempos atravessam fronteiras e sĂ©culos, botando medo em quem se dĂĄ conta de sua existĂȘncia. ĂŹndios e escravos; colonizadores e imigrantes; monarquistas e republicanos; parnasianos e modernistas; gente da roça e da cidade. Cada qual com um mito pra chamar de seu.
Por isso, para que nĂŁo pairem dĂșvidas sobre as intençÔes desses meliantes, segue abaixo um julgamento com os acusados. Que ocupem os seus lugares o Curupira, a Pisadeira, o Boto, a Alamoa e o Papa-Figo. Que se percam nas profundezas do esquecimento ou venham Ă tona na imaginação.
Curupira
Trata-se de uma espĂ©cie de duende selvagem que vive nas florestas brasileiras para proteger as matas e os animais. Ă acusado de participar da mesma gangue de MboitatĂĄ, pois tambĂ©m faz justiça com as prĂłprias mĂŁos contra caçadores e lenhadores. Testemunhas garantem tratar-se de um ser baixinho, com o corpo coberto de pĂȘlos, unhas azuis, olhos injetados de sangue e, nĂŁo fosse suficiente, com os pĂ©s virados para trĂĄs.
Suas investidas são cruéis. Ao flagar alguém maltratando animais ou cortando årvores, não pensa duas vezes. Atrai o dito-cujo para lugares inóspitos, de tal maneira que se perca e morra de fome, sede ou cansaço. Pode também permitir que um caçador abata com facilidade um animal, mas quando o sujeito vai buscar a presa, encontra em seu lugar a mulher e os filhos mortos.
Como artifĂcio para ludibriar a Justiça, aproveita que seus pĂ©s sĂŁo virados para trĂĄs para confundir os investigadores na hora da fuga. Ao checar as pegadas, sempre acham que foi para o lado contrĂĄrio do que realmente estĂĄ. Se vale tambĂ©m de outras identidades, como Caapora, Zumbi e Caiçara.
Hå quem diga que ele não persegue quem caça para sobreviver. Pelo contrårio, até ajuda. Em troca, claro, de algumas prendas, como fumo, comida e cachaça;
Acusação
ExercĂcio arbitrĂĄrio das prĂłprias razĂ”es. HomicĂdio doloso com qualificadoras (emboscada e meio cruel). ReclusĂŁo de 12 a 30 anos. De acordo com o projeto de Lei 270/07, aprovado este ano, as penas para homicĂdio serĂŁo aumentadas de um terço Ă metade se o crime for praticado com a intenção de "fazer justiça pelas prĂłprias mĂŁos".
"O padre JosĂ© de Anchieta, em 1560, relatou ter visto dezenas de Ăndios mortos nas matas, com sinais de espancamento. E garantiu: "Foi o Curupira"".
Pisadeira
Quer evitar pesadelos? EntĂŁo nĂŁo durma de barriga para cima. Este Ă© o conselho de quem garante ter sido atacado pela Pisadeira. A meliante costuma agir em SĂŁo Paulo e Minas Gerais. Suas vĂtimas preferidas sĂŁo aquelas que comeram demais antes de dormir. Desce do telhado - seu esconderijo mais usual - e pisa com muita força no peito e na barriga do incauto adormecido, provocando os pesadelos. HĂĄ controvĂ©rsias sobre a sua aparĂȘncia. De acordo com alguns, Ă© uma mulher bem gorda. JĂĄ o escritor CornĂ©lio Pires forneceu a seguinte descrição da malfeitora: "Essa Ă© uma muiĂ© muito magra, que tem os dedos cumprido e seco cum cada unhĂŁo! Tem as perna curta, cabelo desgadeiado, quexo revirado pra riba e nari magro munto arcado; sombraceia cerrado e zĂłio aceso... Quando a gente caba de ciĂĄ e vai durmi logo, deitado de costa... a boca do estĂĄmo... Purisso nunca se deve dexĂĄ as criança durmi de costa". Pelo sim, pelo nĂŁo, caro amigo... Barriga pra baixo e bons sonhos.
Acusação
Ofender a integridade corporal ou a saĂșde de outrem. Detenção de trĂȘs meses a um ano. Se for caracterizado como tortura, passa a ser crime hediondo e inafiançåvel.
"Uma vĂtima que nĂŁo quis se identificar lembra os momentos tenebrosos por que passou com a Pisadeira: "Lutei com a velha a noite toda e acordei fatigado. Ela possui uma força espantosa!"".
Boto
Um verdadeiro Don Juan brasileiro. Canalha, boĂȘmio e extremamente sedutor, costuma aparecer em festas de vilarejos ribeirinhos. Basta começar a mĂșsica e eis que surge o cidadĂŁo, nĂŁo mais com aparĂȘncia de boto, mas de homem. Sua roupa Ă© alinhada e estĂĄ sempre de chapĂ©u (com um buraco na parte de cima para respirar melhor). Ă misterioso, com olhar profundo e desafiador. Tem um bom humor irresistĂvel e um ar de malandro na medida certa. Bebe muito, mas nunca fica bĂȘbado. Sempre sabe o que falar, na ocasiĂŁo certa e no momento exato.
Dança como ninguém, com um toque macio e sedutor. A moça escolhida fica maluca, pronta para se deixar levar a uma noite de tórrida paixão. E éo que costuma acontecer. Como todo bom cafajeste, porém, o Boto não liga no dia seguinte. Nem manda e-mail. Ainda mais quando a donzela engravida.
Um alerta, porĂ©m, precisa ser feito. NĂŁo se deve confiar em demasia nas supostas vĂtimas. HĂĄ quem garanta que o tal Boto nunca existiu, que Ă© sĂł uma desculpa para justificar a gravidez de moças solteiras. "Juro que nĂŁo foi o Jurandir, mamĂŁe. SĂł pode ter sido o Boto!"
Acusação
NĂŁo reconhecimento de paternidade. O suposto pai serĂĄ notificado, e assumirĂĄ a paternidade ou contestarĂĄ a ação. Neste caso serĂĄ necessĂĄrio exame DNA para confirmação. Caso nĂŁo pague a pensĂŁo alimentĂcia, pode cumprir pena de reclusĂŁo de atĂ© trĂȘs meses.
"O escritor Umberto Peregrino diz ter conhecido uma donzela seduzida pelo acusado, Ao registrar a criança que trazia como lembrança da noite de paixão, perguntaram-lhe de quem seria. "à do Boto."".
Alamoa
A bandidagem estĂĄ Ă solta pelo PaĂs. AtĂ© regiĂ”es distantes e pacatas andam envolvidas em crimes misteriosos. Ă o caso do arquipĂ©lago de Fernando de Noronha, conhecido por suas praias maravilhosas e quase desabitadas. PorĂ©m, entre os poucos moradores, hĂĄ alguns marginais. A mais famosa Ă© a Alamoa, ou Alemoa, uma mulher que vive no alto do morro do Pico, a mil metros de altura.
Ela surge como uma loiraça de parar o trùnsito, completamente sem roupa. Seduz os moradores locais e viajantes. Quando o cidadão jå estå com coraçÔes de desenho animado nos olhos, ela se transforma numa horripilante caveira, capaz de matar (literalmente, em alguns casos) o cidadão de susto.
Outra tĂĄtica da acusada Ă© convencer a vĂtima a acompanhĂĄ-la atĂ© sua casa, em cima da montanha. No caminho, joga uma conversinha que induz o acompanhante ao suicĂdio. De acordo com historiadores, ela nĂŁo tem nada de alemĂŁ, como sugere o nome. Ă sim, holandesa, vinda nas embarcaçÔes que rumaram a Pernambuco com MaurĂcio de Nassau.
Acusação
Induzir ou instigar alguĂ©m a suicidar-se ou prestar-lhe auxĂlio para que o faça. ReclusĂŁo de dois a seis anos, caso o suicĂdio se consume. A pena Ă© duplicada se o crime Ă© praticado por motivo egoĂstico. Morte devido a aplicação de um susto se enquadra em homicĂdio culposo. Detenção de um a trĂȘs anos. Como estrangeira, pode cumprir pena no PaĂs ou sofrer extradição sumĂĄria.
"Olavo Dantas narra os expedientes da Alamoa. "O enamorado entra a porta do Pico para fruir as delĂcias daquele corpo fascinante. A ninfa entĂŁo transforma-se numa caveira baudelairiana. E a pedra logo se fecha atrĂĄs do louco apaixonado, que desaparece para sempre.""
Papa-Figo
Ele age do AmapĂĄ ao Rio Grande do Sul - do Oiapoque ao ChuĂ, como se diz. NĂŁo hĂĄ um rincĂŁo brasileiro onde se esteja livre de seus ataques. Ă um velhinho comum, sem nenhuma caracterĂstica que o faça ser reconhecido facilmente. Mas sempre carrega um saco Ă s costas (dizem que Ă© o avĂŽ do Homem do Saco, mas nĂŁo garantimos). O anciĂŁo sofre de uma rara e incurĂĄvel molĂ©stia. Rapta crianças (pra variar, as desobedientes) com a intenção de devorar o fĂgado e assim aplacar sua doença. Por sua idade avançada, costuma contratar parceiros para ajudĂĄ-lo na missĂŁo. Os capangas agem prĂłximo a escolas e distribuem brinquedos, doces e comidas gostosas para atrair a criançada. EntĂŁo levam as vĂtimas para o Papa-Figo, que, depois da experiĂȘncia antropofĂĄgica, abandona o corpo junto a uma grande soma de dinheiro, que Ă© para compensar financeiramente a famĂlia.
Acusação
HomicĂdio qualificado (execução cruel). Pena de 12 a 30 anos. Ainda pode responder por formação de quadrilha ou bando. A pena Ă© agravada se a vĂtima tem a confiança do criminoso. Brecha na lei: canibalismo nĂŁo Ă© considerado crime em caso de extrema sobrevivĂȘncia.
"Ademar Vidal alerta: "O Papa-Figo restringe sua caça apenas aos meninos malcomportados, desobedientes, teimosos ou chorÔes". Recomenda-se, porém, não arriscar."
A sentença
O JuĂz do Supremo Tribunal do Folclore, CĂąmara Cascudo, entra na corte e pede que todos os acusados fiquem de pĂ©. Ele Ă© o maior conhecedor das crenças e costumes brasileiros, e passou as Ășltimas horas ouvindo promotores, testemunhas e rĂ©us. ApĂłs analisar o caso, estĂĄ pronto para proferir a sentença. Todos eestçao apreensivos. "Quando comecei meu trabalho de catalogar esses seres, nĂŁo havia no Brasil qualquer associação que reunisse malucos que amassem o folclore. Fiz o possĂvel para incomodar intensamente amigos e desconhecidos. Mendiguei histĂłrias de bichos e homens assombrosos em todos os Estados", justifica, para em seguida, declarar que o trabalhĂŁo valeu a pena. "Reuni uma bicharia fantĂĄstica. Prendi todos nos meus livros." A palavra "prendi" faz os cinco acusados tremerem. Mas, com um leve sorriso, Cascudo encerra o suspense: "EstĂŁo todos absolvidos. Essas figuras fantĂĄsticas deve estar sempre livres no imaginĂĄrio popular". Comemoração no tribunal. A bicharada respira aliviada, certa de ter ganhado sobrevida na memĂłria dos brasileiros. OU, ao menos, na dos leitores desse texto.
Texto - Bruno Hoffmann.
Fonte: Almanaque Brasil - NĂșmero 114. (http://www.almanaquebrasil.com.br/)
Saiba mais:
Site da Sociedade dos Observadores de Saci - http://www.sosaci.org/
NĂŁo deixem de enviar suas mensagens atravĂ©s do âFale Conoscoâ do site.
http://www.faculdademental.com.br/fale.php