A "CRISE" AMERICANA
19/01/2008 -
COLUNA DO CANALHA
MUITO CUIDADO COM GEORGE W.BUSH
A charge do Jean mostra bem o que nĂłs jĂĄ vimos no passado, em tempos de crise nos EUA.
Fonte: Folha de S.Paulo - 19/01/08.
EUA DESEMPENHAM PAPEL QUE ERA DO TERCEIRO MUNDO
México. Brasil. Argentina. México, de novo. Tailùndia. Indonésia. Argentina, de novo. E, agora, os Estados Unidos.
Ao longo dos Ășltimos 30 anos, essa histĂłria se repetiu inĂșmeras vezes. Os investidores globais, desapontados com os retornos que vinham obtendo, saem em busca de alternativas. Acreditam ter encontrado aquilo por que procuram em algum paĂs ou outro, e o dinheiro começa a acorrer.
Mas, enfim, chega o momento em que se torna claro que a oportunidade de investimento nĂŁo era tĂŁo boa assim, e o dinheiro escapa correndo, com conseqĂŒĂȘncias desagradĂĄveis para o queridinho financeiro da vez. Essa Ă© a histĂłria de mĂșltiplas crises financeiras na AmĂ©rica Latina e na Ăsia. E tambĂ©m Ă© a histĂłria da bolha combinada nos setores de crĂ©dito e habitação dos Estados Unidos. Hoje em dia, estamos desempenhando o papel que costumava ficar reservado Ă s economias de Terceiro Mundo.
Por motivos que explicarei mais tarde, Ă© improvĂĄvel que os Estados Unidos experimentem recessĂŁo tĂŁo severa quanto, digamos, a da Argentina. Mas as origens de nosso problema sĂŁo mais ou menos as mesmas. E compreender essas origens tambĂ©m nos ajuda a compreender de que maneira a polĂtica econĂŽmica norte-americana errou.
As origens mundiais de nossa atual encrenca foram expostas por ninguém menos que Ben Bernanke, em um influente discurso que ele fez no começo de 2005, antes que fosse indicado ao comando do Federal Reserve (Fed, o banco central dos Estados Unidos). Bernanke propÎs uma boa pergunta: "Por que os Estados Unidos, com a maior economia do mundo, estão tomando empréstimos descontroladamente nos mercados de capital internacionais, em lugar de conceder empréstimos, como seria natural?".
A resposta que ele propunha era que a explicação principal nĂŁo estava nos Estados Unidos, mas sim no exterior. Especialmente nas economias do Terceiro Mundo, que haviam atraĂdo muitos investidores ao longo dos anos 90, mas sofreram forte abalo em uma sĂ©rie de crises financeiras iniciadas em 1997. Como resultado, elas reverteram abruptamente sua posição e se tornaram exportadoras -e nĂŁo importadoras- de capital, jĂĄ que seus governos começaram a acumular imensas reservas de segurança em forma de ativos internacionais. O resultado, segundo Bernanke, era um "excedente mundial de poupança": muito dinheiro, e nenhum destino interessante.
Por fim, a maior parte desse dinheiro terminou destinada aos Estados Unidos. Por quĂȘ? Por conta, na opiniĂŁo de Bernanke, da "profundidade e da sofisticação dos mercados financeiros do paĂs".
Ele tinha razĂŁo sobre tudo isso, exceto uma coisa: o futuro provaria que os mercados financeiros norte-americanos sĂŁo caracterizados menos pela sofisticação do que por sofismas, termo que meu dicionĂĄrio define como "um argumento deliberadamente invĂĄlido que emprega raciocĂnio engenhoso na esperança de iludir alguĂ©m". Um exemplo: "Transformar emprĂ©stimos dĂșbios em obrigaçÔes de dĂvida garantida Ă© uma maneira de criar uma montanha de ativos seguros, com classificação de crĂ©dito AAA, que nunca enfrentarĂŁo problemas".
Em outras palavras, os Estados Unidos nĂŁo estavam perfeitamente capacitados a fazer uso dos fundos mundiais excedentes. Em lugar disso, representavam um mercado em que largas somas podiam ser, e foram, investidas muito mal. Direta ou indiretamente, o capital dos investidores internacionais que fluiu para os Estados Unidos terminou por financiar a dupla bolha do crĂ©dito e da habitação que agora estourou, com conseqĂŒĂȘncias dolorosas.
Como eu disse, essas conseqĂŒĂȘncias provavelmente nĂŁo serĂŁo tĂŁo dolorosas como as recessĂ”es devastadoras que convulsionaram os paĂses do Terceiro Mundo atingidos pela mesma sĂndrome. O fator salvador, para os Estados Unidos, Ă© que nossas dĂvidas estĂŁo denominadas em nossa moeda. Isso significa que nĂŁo enfrentaremos a mesma espĂ©cie de espiral da morte financeira pela qual a Argentina passou e que forçou uma explosĂŁo no valor da dĂvida nacional, denominada em dĂłlar, com relação aos ativos internos.
Mas, mesmo sem os efeitos cambiais, o prĂłximo ano ou dois podem se provar bastante desagradĂĄveis.
O que deverĂamos ter feito de diferente? Alguns crĂticos afirmam que o Fed ajudou a inflar a bolha da habitação ao cortar demais as taxas de juros. Mas os juros estavam baixos por um motivo: ainda que a mais recente recessĂŁo tenha acabado oficialmente em novembro de 2001, foram precisos dois anos a mais para que a economia norte-americana começasse a produzir geração convincente de empregos, e o Fed estava preocupado sobre uma estagnação econĂŽmica prolongada Ă maneira da que atingiu o JapĂŁo.
O verdadeiro pecado, tanto do Fed quanto do governo Bush, foi a falta de supervisĂŁo adulta sobre os mercados descontrolados.
NĂŁo se trata apenas da recusa de Alan Greenspan em admitir que havia algo mais que apenas um pouco de "espuma" no mercado da habitação, ou sua rejeição a quaisquer medidas de controle dos abusos no mercado de crĂ©dito imobiliĂĄrio de risco ("subprime"). O fato Ă© que, Ă medida que a complexidade do sistema financeiro norte-americano crescia, a estrutura das regulamentaçÔes bancĂĄrias que nos protegem se tornou insuficiente para realizar suas tarefas -mas, em lugar de esforços para atualizar a regulamentação, sĂł ouvĂamos loas Ă s maravilhas do livre mercado. No momento, Ben Bernanke estĂĄ em ritmo de administração de crise, tentando consertar os estragos deixados por seu predecessor. NĂŁo tenho nada a objetar ao seu depoimento ao Congresso dos EUA anteontem, embora eu suspeite que jĂĄ seja tarde demais para impedir uma recessĂŁo.
Mas devemos ter a esperança de que, quando as coisas se assentarem, Bernanke tome a iniciativa e fale sobre o que precisa ser feito para resolver os problemas de um sistema financeiro no qual as coisas estão muito, muito erradas.
Paul Krugman, economista, Ă© colunista do "New York Times" e professor na Universidade Princeton (EUA).
Fonte: Folha de S.Paulo - 19/01/08.
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