âHERROSâ ENFORCADOS
CERTA MANHĂ EM TEERĂ
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http://lens.blogs.nytimes.com/2012/06/11/documenting-death-sentences-in-iran/
à curioso, mas até aquele momento eu jamais me dera conta do que significava matar um homem saudåvel e consciente. Quando vi o prisioneiro pisar de lado para desviar da poça d'ågua, percebi o mistério, a injustiça execråvel de interromper uma vida no auge. Aquele homem não estava agonizando, estava tão vivo quanto nós.
[...] Ele e nĂłs Ă©ramos um grupo de homens caminhando juntos, vendo, ouvindo, sentindo, percebendo o mesmo mundo; e em dois minutos, com um estalo sĂșbito, um de nĂłs partiria -uma mente a menos, um mundo a menos.
George Orwell, "Um Enforcamento"
A Manhã nasce escura e quente em Robat Karim, cidade-dormitório 30 quilÎmetros a sudoeste de Teerã, onde uma pequena multidão começa a se aglomerar em frente à delegacia. Uma barreira de metal separa a massa do estacionamento, e os policiais cercam dois caminhÔes, cada um deles equipado com um imponente guindaste na carroceria.
O burburinho irrompe quando se abre o portão. Homens encapuzados saem do prédio, puxando pelo braço um homem baixinho e grisalho, algemado nos pés e nas mãos; logo mais surge o segundo. Ambos ficam postados ao lado dos caminhÔes por alguns instantes, sob a mira de cùmeras e celulares.
O baixinho parece travado de tensĂŁo e nĂŁo abre a boca. O outro sorri e faz piada com os policiais, que mal respondem.
Sob os primeiros raios de sol, um alto-falante estourado lista as acusaçÔes e anuncia a sentença capital contra os dois homens. O primeiro seria um traficante de drogas reincidente. O segundo, técnico eletricista, foi acusado de estuprar mulheres ao ir prestar serviços em suas casas.
O silĂȘncio se instala quando os homens de capuz preto acomodam cada um dos condenados no alto dos patĂbulos, improvisados na caçamba dos caminhĂ”es com tambores de combustĂvel. O alto-falante agora entoa suratas (versĂculos) do CorĂŁo.
MĂŁos amarradas nas costas, o primeiro condenado mexe a cabeça atĂ© conseguir beijar a corda em seu pescoço. O segundo ergue a cabeça e grita. "Sou inocente, abaixo o regime dos mulĂĄs", repete trĂȘs vezes, gerando um tenso frisson.
Um tom abaixo, pronuncia sua Ășltima frase. "Nasci em nome de Ali [santo xiita] e morro em nome de Ali", diz ele, antes que um carrasco derrube no asfalto, com um poderoso pontapĂ©, o tambor que o sustenta. Os guindastes sĂŁo imediatamente acionados, içando os dois desgraçados pelo pescoço a cerca de cinco metros de altura.
Os corpos suspensos esboçam um trĂȘmulo balançar de pernas, enquanto mĂŁos e dedos se retorcem devagar. Um rapaz solta: "Eles estĂŁo se mexendo que nem rĂŁs, Ă© isso mesmo que merecem". Mulheres em prantos viram de costas e se afastam. O estrebuchamento prossegue por cerca de um minuto, atĂ© que os corpos ficam enrijecidos, com a cabeça inclinada num Ăąngulo anormal.
"JĂĄ morreram? SĂ©rio que jĂĄ acabou?", pergunta um adolescente. Outro comemora: "JĂĄ gravei tudo no celular, agora posso ir embora e mandar o vĂdeo para a galera".
A tensĂŁo se dilui aos poucos. Conversas e risos voltam. Conhecidos se reencontram, apertam-se as mĂŁos, perguntam pelas novidades. Homens de terno sem gravata, traje tĂpico dos funcionĂĄrios do regime, sĂŁo saudados com reverĂȘncia ao circular em meio Ă turba.
A maior parte do pĂșblico Ă© formada por homens jovens. TambĂ©m hĂĄ casais e famĂlias inteiras, inclusive crianças de colo, que olham fixamente para os dois homens de olhos fechados e boca aberta pendurados ali na frente.
Após 45 minutos, os guinchos são novamente acionados, descendo com vagar a carga até o asfalto. Policiais desfazem o nó no pescoço dos mortos e guardam as cordas num saco preto. Um médico-legista se inclina sobre os cadåveres, mexe nos olhos deles e toma-lhes o pulso antes de decretar o óbito. Os policiais se encarregam de acondicionar os corpos em sacos de lona, que são levados num rabecão.
O sol do verĂŁo jĂĄ pesa quando os policiais dispersam a multidĂŁo. A praça Ă© reaberta ao trĂąnsito, numa cacofonia de buzinas e uivos das sirenes dos carros oficiais. Os chinelos de couro que caĂram dos pĂ©s de um dos condenados permanecem no chĂŁo. AviĂ”es sobrevoam a praça, situada na rota de pouso do aeroporto internacional Imam Khomeini, o maior do paĂs.
NOTĂCIAS
No dia seguinte Ă execução em Robat Karim, a agĂȘncia de notĂcias prĂł-regime Mehr News detalhava os crimes atribuĂdos aos condenados, descritos como "diabĂłlicos". Uma reportagem explica que a polĂcia passou dois anos Ă caça do suposto estuprador. A captura sĂł aconteceu, relata a Mehr News, graças ao zelo de um cidadĂŁo comum que reconheceu o procurado na rua. Segundo a agĂȘncia, o acusado admitiu para o juiz ter cometido "atos obscuros".
A dupla execução também teve destaque nas fotos da imprensa -as imagens aqui publicadas foram cedidas por um jornalista local. Algumas mostravam o rosto inchado e desfigurado dos dois. Outras retratavam crianças com expressão tensa por trås do cordão policial. A TV estatal tratou o tema com mais pudor, exibindo apenas imagens da multidão e dos preparativos.
Seja para a mĂdia oficial ou para os contestadores do regime, o poder icĂŽnico dos guindastes da morte fixou-se como sĂmbolo da opressĂŁo que o IrĂŁ enfrenta. Na histĂłria em quadrinhos "O ParaĂso de Zahra" (LeYa/Barba Negra), sobre o desaparecimento de um jovem envolvido nos protestos pĂłs-eleiçÔes de 2009, eles ocupam uma tĂ©trica pĂĄgina. "Putz, mais um daqueles circos doentios", diz um taxista ao perceber o motivo do congestionamento Ă sua frente.
A voz mais contundente contra as execuçÔes pĂșblicas -e a pena de morte em geral- surgiu do coração do establishment iraniano. O fotĂłgrafo Ebrahim Noroozi, 32, ex-aluno de escolas religiosas e hoje editor de imagens no jornal prĂł-regime "Jam-e-Jam", registrou imagens de enforcamentos que o levaram a faturar em abril o segundo lugar no World Press 2012, um dos mais prestigiados prĂȘmios internacionais de fotografia, na categoria "temas contemporĂąneos".
Em entrevista ao "New York Times", Noroozi afirmou: "Não vou a execuçÔes para me divertir. Como jornalista, não quero transmitir nenhum julgamento [...] Mas o ato em si me enoja." E completou: "à um ciclo de violaçÔes que termina com uma plateia testemunhando o ato final de uma história que causou dor a muita gente."
ENFORCAMENTOS
ExecuçÔes em praça pĂșblica voltaram ao dia a dia do IrĂŁ desde o ano passado, quando o governo recuou do banimento anunciado em 2008. Desde entĂŁo, toda semana jornais e sites de notĂcias anunciam data e local dos enforcamentos. Em cidades pequenas, as informaçÔes sĂŁo divulgadas em cartazes pelas ruas.
CrĂticos do regime e ativistas de direitos humanos dizem que a volta das execuçÔes pĂșblicas -e da autorização para que a imprensa local as registre- Ă© parte da estratĂ©gia do governo para semear o terror num paĂs ainda traumatizado pela Ășltima eleição presidencial.
Em 2009, o regime enfrentou a onda de protestos contra fraudes na reeleição do conservador Mahmoud Ahmadinejad. O movimento sĂł foi esmagado quando interveio o lĂder supremo do paĂs, o aiatolĂĄ Ali Khamenei, detentor da palavra final em todos os temas nacionais.
Khamenei avalizou a controversa vitĂłria de Ahmadinejad e ordenou repressĂŁo impiedosa de qualquer contestação. Aos olhos do aiatolĂĄ, era a prĂłpria sobrevivĂȘncia do regime teocrĂĄtico, em vigor desde a Revolução IslĂąmica de 1979, que estava e continua em jogo. A mĂŁo pesada do governo contra os criminosos Ă© amplamente percebida como um recado a eventuais dissidentes.
Apesar de sua ampla visibilidade na mĂdia iraniana, as execuçÔes pĂșblicas representam uma parcela modesta do total de sentenças capitais -menos de 20%, segundo estimativas assumidamente imprecisas num paĂs com poucas estatĂsticas confiĂĄveis. A maior parte das condenaçÔes Ă morte Ă© aplicada dentro das prisĂ”es.
No ano passado, o nĂșmero total de execuçÔes no IrĂŁ foi de ao menos 360, segundo a ONG Anistia Internacional. Iranianos exilados dizem que o nĂșmero real Ă© duas vezes maior. Em 2010, teriam sido 252, ainda de acordo com a AI. Cinco anos antes, o nĂșmero nĂŁo chegava a cem. O IrĂŁ Ă© hoje vice-lĂder do ranking mundial de execuçÔes, ficando atrĂĄs apenas da China.
SĂŁo raros os casos de mulheres condenadas Ă morte. Mas o IrĂŁ Ă© apontado por grupos de defesa dos direitos humanos como o Ășnico paĂs a sentenciar regularmente menores de idade, apesar de ser signatĂĄrio da Convenção dos Direitos da Criança, que veta a prĂĄtica.
Condenados à morte podem, em tese, recorrer da sentença à Corte Suprema, a quem cabe confirmå-la ou ordenar a reabertura do processo em caso de irregularidade. Não hå limite para a quantidade de recursos apresentados.
Os mais expostos Ă sentença sĂŁo os grandes narcotraficantes, que respondem por cerca de dois terços das execuçÔes. Estupradores e assassinos tambĂ©m estĂŁo na mira dos juĂzes. HĂĄ, ainda, casos isolados de sequestro, terrorismo, adultĂ©rio, homossexualidade e consumo contumaz de ĂĄlcool.
O IrĂŁ nĂŁo admite ter prisioneiros polĂticos, mas nĂŁo faltam casos de dissidentes condenados Ă morte por acusaçÔes tidas como forjadas. Volta e meia os condenados sĂŁo informados da sentença dias antes da execução e tĂȘm direito a receber uma Ășltima visita da famĂlia.
PERDĂO
Em alguns casos de assassinato, assalto ou estupro, um juiz islĂąmico convoca a famĂlia da vĂtima a se pronunciar sobre um eventual perdĂŁo minutos antes da execução. HĂĄ relatos de clemĂȘncia de Ășltima hora que obrigaram policiais a cortar cordas jĂĄ estendidas pelo corpo do condenado. O perdĂŁo tambĂ©m pode surgir diretamente do gabinete do lĂder supremo, mas os casos sĂŁo raros.
O enforcamento substitui o pelotão de fuzilamento dos tempos da monarquia, em tese ainda em vigor, mas abolido na pråtica. Se aplicada num golpe råpido e seco, a forca leva à quebra das vértebras da coluna cervical e à secção da medula espinhal, causando morte quase instantùnea.
Assim foi executado o ex-ditador iraquiano Saddam Hussein numa prisão de Bagdå, em 2006. Mas, na falta do impacto, conhecido como "fratura do enforcado", a morte se darå por estrangulamento e falta de irrigação do cérebro, num processo mais lento e sofrido.
APEDREJAMENTO
TambĂ©m nĂŁo hĂĄ mais registro de execução por apedrejamento, oficialmente banida desde a minirreforma jurĂdica do ano passado.
CĂ©ticos veem brechas na nova lei e sustentam que a lapidação ainda pode ser aplicada contra Sakineh Ashtiani, iraniana condenada Ă morte sob acusação de ter traĂdo e mandado assassinar o marido. O caso gerou comoção mundial, levando o entĂŁo presidente Lula a oferecer, em 2010, asilo Ă condenada.
O IrĂŁ recusou, mas a pressĂŁo brasileira contribuiu para a revogação da sentença e posterior abolição do apedrejamento. Sakineh encontra-se hoje num limbo jurĂdico, no qual nĂŁo se sabe sequer se a pena capital estĂĄ mantida.
O corredor da morte iraniano abriga outros acusados cuja condenação gerou comoção internacional. O mais ilustre é o do pastor Youssef Nadarkhani, que, segundo advogados, estå preso e ameaçado de execução desde 2009 por ter se convertido ao cristianismo.
O Irã nega a condenação por apostasia -o abandono da fé- e diz que Nadarkhani, 33, foi inicialmente condenado à morte por uma série de crimes, entre eles estupro, ameaça à segurança nacional, extorsão e corrupção. A justiça iraniana afirma que a pena foi revogada, mas o pastor continua preso, num quadro legal incerto.
Amir Hekmati, 29, que tem tambĂ©m cidadania americana, estĂĄ detido sob acusação de terrorismo e espionagem para a CIA, a agĂȘncia de inteligĂȘncia dos EUA. Ele alega que visitava parentes no IrĂŁ quando foi preso e condenado Ă morte.
Também ecoa no Ocidente o caso de Saeed Malekpour, 36, condenado à morte sob pretexto de promover pornografia na internet. Seus defensores alegam que ele não tem culpa por ter criado um software que acabou sendo usado por terceiros, sem seu conhecimento, para criar sites adultos.
Na semana passada, autoridades anunciaram a condenação à morte de dois iranianos por repetido consumo de ålcool, num caso com ampla repercussão na imprensa ocidental.
DEFESA
O governo nega que sua polĂtica seja a de espalhar o terror na população e insiste em que todos os suspeitos tĂȘm acesso irrestrito Ă defesa. Mas as autoridades nĂŁo se incomodam em deixar no ar a ideia de que as execuçÔes servem para inibir açÔes criminosas.
Diplomatas iranianos ostentam mundo afora os Ăndices de violĂȘncia de seu paĂs, efetivamente baixos, inclusive para padrĂ”es europeus. CrĂticas contra a metodologia sĂŁo tratadas como mera diferença de natureza cultural.
Dezenas de estrangeiros (de europeus e americanos a salvadorenhos, sudaneses e atĂ© um brasileiro) convertidos ao xiismo (ramo do islĂŁ predominante no IrĂŁ) alunos da principal escola de aiatolĂĄs, em Qom, no sul de TeerĂŁ, nĂŁo escondem o fascĂnio pelo "mĂ©todo de redução de criminalidade".
O discurso religioso Ă© usado para justificar prĂĄticas vistas como bĂĄrbaras no Ocidente. A RepĂșblica IslĂąmica diz seguir Ă risca as determinaçÔes do CorĂŁo em matĂ©ria de lei e ordem pĂșblica. O discurso subjacente Ă© de que, por natureza, o islĂŁ exige uma interpretação literal das escrituras como Ășnica forma de garantir a paz social.
No discurso oficial, quem critica o Irã deveria apontar o dedo para abusos cometidos pelos EUA e seus aliados, entre os quais a Aråbia Saudita, onde ainda se pratica a execução por decapitação.
Essa justificativa oficial, no entanto, Ă© contestada inclusive por altos clĂ©rigos dissidentes, hoje forçados ao silĂȘncio, que nĂŁo veem fundamento teolĂłgico na aplicação constante e sistemĂĄtica de tantas execuçÔes. Conversando com cidadĂŁos comuns iranianos, inclusive devotos praticantes, Ă© fĂĄcil perceber que a visĂŁo dos aiatolĂĄs antirregime tem ampla aceitação.
HĂĄ tambĂ©m uma parcela relevante da população iraniana que nĂŁo tem apego Ă religiĂŁo e, portanto, Ă© visceralmente contra o governo teocrĂĄtico. O norte de TeerĂŁ Ă© o reduto de uma classe mĂ©dia urbana e antenada, nascida sob a Revolução IslĂąmica (dois terços da população nasceram depois de 1979) e sob forte influĂȘncia feminina (60% dos universitĂĄrios iranianos sĂŁo mulheres).
Longe de estar confinada aos bairros burgueses da capital, esta parcela se espalha pelas principais cidades do paĂs. Ă este IrĂŁ, moderno, mas sempre nacionalista, que esteve na linha de frente nos protestos anti-Ahmadinejad de 2009.
Mas a repressĂŁo e as dificuldades derivadas das sançÔes econĂŽmicas por causa do programa nuclear, cada vez mais duras, secaram a veia polĂtica desta parcela da população cujos lĂderes permanecem presos ou impedidos de participar da vida pĂșblica. Para muitos jovens, o Ășnico projeto de vida Ă© obter um visto de residĂȘncia na Europa ou na AmĂ©rica do Norte.
Samy Adghirni â Fonte: Folha de S.Paulo â 01/07/12.
Mais detalhes/fotos:
http://lens.blogs.nytimes.com/2012/06/11/documenting-death-sentences-in-iran/
E NĂIS QUE PENSAVA QUE NUNCA ERRAVA!
CONTINUAMOS ERRANDO PROPOSITALMENTE...! HERRAR Ă UMANO!
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