COMEĂANDO O ANO COM MUITA CULTURA...
MUSEĂ RODIN - PARIS
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(Colaboração: Tadeu - Curitiba)
O QUE NĂO LEIO NOS ASTROS
Numa noite de 31 de dezembro, hĂĄ muitos anos, na casa da famĂlia, no Leme, onde passĂĄvamos o RĂ©veillon, debrucei-me Ă janela e olhei o cĂ©u. Era meia-noite e brindĂĄvamos a passagem do ano. Bebi um gole de champanhe e demorei-me a observar alguns pontos de luz que brilhavam na escuridĂŁo cĂłsmica. Eram estrelas? Planetas? De fato era o mesmo cĂ©u que outras vezes olhara daquela janela.
Não havia ali nenhum sinal de que um novo ano começava. Olhei para a rua, os carros estacionados sob a luz dos postes, nada indicava que algo de especial acontecia. O Ano Novo não começa nem no céu nem no chão, pensei, começa no coração. No coração e na mente das pessoas, porque a vida é inventada. Nós dividimos o tempo em dias, meses, anos e, só por isso, amanhã, dia 31, termina o ano de 2007.
NĂŁo estarei naquela janela do apartamento do Leme e muitas daquelas pessoas nĂŁo existem mais, melhor dizendo, estarĂŁo possivelmente brilhando como pequenas luzes na noite enigmĂĄtica. NĂŁo voltarei a buscar nas estrelas sinais de que o ano mudou, mesmo porque, aqui em Copacabana, o cĂ©u estarĂĄ tomado pelo estourar colorido dos fogos de artifĂcio. E esse, sim, Ă© um sinal de que um ano novo começa. NĂŁo um sinal cĂłsmico, jĂĄ que o cosmo estĂĄ na dele: um sinal humano, com que assinalamos a alegria de estarmos vivos.
Mas, hoje, dia 30, pergunto-me o que de significativo ocorreu durante este ano que finda. Minha memĂłria Ă© falha, jĂĄ nem consigo saber ao certo se determinado fato aconteceu este ano ou no ano anterior. Gostaria de sĂł lembrar coisas boas, como aquele ursinho branco que a mĂŁe ursa abandonou e cuja imagem comoveu o mundo. Os ecologistas queriam acabar com ele, dentro da lĂłgica ecolĂłgica, segundo a qual, se a mĂŁe ursa desistiu de criĂĄ-lo, nĂŁo devemos nĂłs contrariĂĄ-la. Ela Ă© a natureza e a natureza tem sempre razĂŁo. E eu me perguntava: por que matar um bichinho tĂŁo lindo e sem culpa? Felizmente, os funcionĂĄrios do zĂŽo, "ignorantes", deixaram-se levar pelo carinho e o salvaram. A adesĂŁo cega a "verdades" pode nos levar a praticar crueldades, como, por exemplo, o jovem Raskolnikoff de "Crime e Castigo" ou, em escala apocalĂptica, Osama bin Laden.
Um fato que muito me chocou este ano foi a cena daquela deputada chavista, esbofeteando, "ao vivo", um apresentador de televisĂŁo, que a teria ofendido. Ela veio garantida por quatro capangas, invadiu o estĂșdio e espancou o cara, repetidas vezes. Antevi o que seria a Venezuela sob uma ditadura chavista.
Se Hugo Chåvez me lembra um urso pouco simpåtico, reconheço, não obstante, que a sua liderança é expressão do contexto histórico venezuelano, marcado por governos corruptos e indiferentes às desigualdades sociais. Porque procurou reduzir essas desigualdades, conta com o apoio dos pobres e dos que com eles se identificam. Mas a ambição do poder subiu-lhe à cabeça e ele então inventou o "socialismo bolivariano", que implicaria o fim da democracia na Venezuela. E não só lå, uma vez que, por dizer-se bolivariano, o novo regime tenderia a se estender por toda a América Latina.
ChĂĄvez deixa isso evidente quando se intromete nas questĂ”es internas dos paĂses vizinhos, seja ColĂŽmbia, Peru, BolĂvia, Equador, MĂ©xico e mesmo o Brasil, cujo Congresso foi por ele insultado.
As mudanças que ChĂĄvez pretendia ver aprovadas pelo referendo, alĂ©m de permitir-lhe reeleger-se indefinidamente, transferia para suas mĂŁos uma soma de poder que acabava com a autonomia do JudiciĂĄrio e do Parlamento e liquidava na prĂĄtica com a liberdade de imprensa. A criação de comitĂȘs comunais, cujos lĂderes dependeriam de sua aprovação, visava anular a ação dos partidos polĂticos e levar Ă imposição do partido Ășnico. Confiado na popularidade, ChĂĄvez tinha como certa a aprovação da proposta. Mas eis que a juventude universitĂĄria venezuelana tomou a si a missĂŁo de defender a democracia, foi para as ruas, mobilizou a opiniĂŁo pĂșblica e derrotou o lĂder que parecia imbatĂvel.
Quase no mesmo dia, pesquisa Datafolha revelou que 65% dos brasileiros sĂŁo contrĂĄrios ao terceiro mandato de Lula. Evo Morales tambĂ©m desistiu da reeleição sem limites. Os trĂȘs baixaram o tom.
Talvez tenham entendido que podem fazer muito por seus paĂses, sem embarcar numa aventura antidemocrĂĄtica. Quanto a ChĂĄvez e Morales, nĂŁo garanto, mas Lula sabe que, no Brasil, o buraco Ă© mais embaixo. De qualquer modo, se nĂŁo leio no cĂ©u nenhuma mensagem confiĂĄvel, sei que pelo menos nĂŁo pagaremos CPMF nos prĂłximos meses.
Ferreira Gullar - Fonte: Folha de S.Paulo - 30/12/07.
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