VERDADE E PRECONCEITO
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Pretendo relatar um caso a seguir, mas quero antes informar que os códigos morais, sociais e legais vigentes, exigem que eu tenha o måximo de cuidado nas minhas colocaçÔes, uma vez que uma palavra mal colocada pode gerar uma impressão errada do que eu realmente disse.
Ao lado do edifĂcio onde moro existe um conjunto de casas no mesmo terreno, a qual podemos chamar de condomĂnio de baixĂssima renda. Um ambiente que destoa bastante com a qualidade do bairro.
O imĂłvel pertence a uma herança - ainda a ser deixada, uma vez que o patriarca da famĂlia ainda nĂŁo morreu â para uma penca de filhos.
Quando me mudei para cå logo descobri o pagode que acontece na casa da dona Dilma. à surpreendente. Começa umas duas da tarde e sabe-se lå a hora que vai terminar. E normalmente eles acontecem naquele fim de semana que eu realmente tava a fim de descansar.
AlĂ©m do tipo de mĂșsica jĂĄ nĂŁo ser do meu agrado, a qualidade dos grupos que fazem a tal da mĂșsica Ă© pĂ©ssima.
O repertĂłrio Ă© curto, repetitivo, os caras esquecem a letra, mudam a letra, desafinam, cantam embolados de um jeito que mal dĂĄ pra entender as palavras e me enchem o saco o sĂĄbado inteiro.
Eu gostaria muito de entender de onde surge dinheiro pra tanta cerveja.
Durante a semana jå ouvi discussÔes com ameaça de morte por causa da moeda de um real que tava na base do ventilador. Jå ouvi irmão chamar irmão pra porrada por causa da camisa que ele vestiu. Jå vi a mulherada quase arrancar cabelo por causa do leite Itambé (olha o merchandising aà Zé Geraldo da Itambé) que estava escondido debaixo da pia, atrås do botijão de gås.
Mas o dinheiro pra cerveja do pagode não falta. E ninguém se lembra da moeda, da camisa ou do litro de leite.
Mais recentemente, mudou-se para a casa dos fundos um grupo de rapazes, cuja opção sexual é diferente da minha.
E desde entĂŁo, o referido condomĂnio de baixĂssima renda tornou-se quase que um local de eventos de baixĂssima renda, pois a moçada adora uma festa. E adora tambĂ©m gritar aos quatro ventos os eventos inerentes as sua opção sexual.
Acho isso muito engraçado porque eu nunca vi ninguém ficar gritando no quintal de casa a forma que fez sexo com sua mulher/marido na noite passada.
Nunca ouvi nenhuma vizinha gritando na janela de casa o tamanho do instrumento de trabalho do seu marido. Muito menos se foi bom, se valeu a pena, ou coisas do gĂȘnero.
Fico me perguntando se isso tem alguma coisa a ver com a tribo a que eles pertencem ou se é apenas falta de educação mesmo.
E tanto quanto o pagode da dona Dilma, eles também me enchem o saco o såbado inteiro e muitas vezes a madrugada do domingo.
AtĂ© a dona Dilma reclama; o que me dĂĄ â confesso â certo prazer de vĂȘ-la provar do prĂłprio veneno. Ă o troco. Mas me enche o saco do mesmo jeito.
AĂ eu me pergunto: como dizer a verdade sem denotar preconceito ao mesmo tempo?
NĂŁo tenho nada contra as coisas que nĂŁo me incomodam. Cada um pode ser o que for, como for. Mas o âonde forâ tem que ter o limite do direito do outro.
Eventualmente eu posso escutar o pagode da dona Dilma, mesmo sem gostar. Entendo perfeitamente o direito dela, mas nĂŁo posso lhe dar o meu direito de nĂŁo querer isso todo fim de semana no meu ouvido. E isso precisa ser respeitado por ela.
JĂĄ sobre os rapazes cuja preferĂȘncia sexual se opĂ”e radicalmente a minha, desses, eu nĂŁo sou obrigado a escutar nada.
NĂŁo sou obrigado a saber das particularidades e promiscuidades de suas vidas privadas.
Não posso respeitar quem não me respeita, quem não respeita as pessoas que estão a sua volta, que não tem noção dos limites da vida em sociedade.
AĂ, eu respondo: a verdade Ă s vezes Ă© preconceituosa mesmo, pois o preconceito nasce da forma como o outro atinge a sua liberdade. AtĂ© a dona Dilma reclama.
Foto: TailĂąndia - Um trabalhador coloca as Ășltimas latas em uma rĂ©plica gigante do trofĂ©u da Copa dos CampeĂ”es da Europa, feita com 5 mil unidades da marca de cerveja que patrocina a competição, em Bangcoc. A obra faz parte de uma exposição de um centro comercial da cidade.
Fonte: Terra - 23/04/08.
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